SOBRE O EVENTO
O evento intitulado As línguas de sinais de microcomunidades surdas em debate: Seminário Internacional de Conclusão do Projeto Lucinda Ferreira, foi organizado pela Profa. Dra. Angelica Rodrigues, coordenadora do Projeto Lucinda Ferreira: perfis de microcomunidades surdos do Brasil e tipologia de línguas de sinais, que tem financiamento da FAPESP (Processo 2022/05962-4), no âmbito do Chamada LinCar Abordagens inovadoras na pesquisa em Linguagem, Comunicações e/ou Artes, de 2022.
Todas as informações do evento assim como a inscrição nas modalidades sem apresentação de trabalho e painel foram disponibilizadas através de site próprio do evento: https://www.even3.com.br/lucinda_ferreira/. A divulgação do evento foi feita através das redes sociais e listas de transmissão da Unesp e do PPG.
Foram aceitas inscrições de pesquisadores da comunidade interna e externa do PPG na modalidade painel e nas oficinas (modalidade sem apresentação de trabalho) que foram realizadas por membros das microcomunidades surdas investigadas no projeto.
Uma grande preocupação da comissão organizadora do evento é a acessibilidade. Desse modo, toda a divulgação e as atividades do evento foram acessíveis às pessoas com deficiência, na sua ampla diversidade.
Os objetivos do seminário foram essencialmente:
O Seminário Final do Projeto Lucinda foi concebido como uma dupla iniciativa. Por um lado, sua realização teve como objetivo divulgar o projeto e suas ações de documentação de línguas de sinais minoritárias usadas em algumas regiões do Brasil. Por outro lado, sobretudo, o evento foi desenhado como uma ação tanto de retribuição quanto de valorização das comunidades surdas que participam do projeto. Desse modo, toda a organização, logística e programação foram pensadas de modo a garantir o deslocamento seguro das pessoas que representaram suas respectivas comunidades, a acessibilidade a todas as atividades realizadas e valorização de seus saberes, culturas e expressão linguística.
Em relação ao deslocamento, as viagens foram realizadas de barco, van, ônibus, carro e avião para que todas as pessoas pudessem chegar à cidade de Araraquara. Foram viagens longas, saindo das regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil, que, considerando todos os deslocamentos, totalizaram 26.354 km. Muitos dos participantes jamais haviam viajado para além de seu estado e a grande maioria nunca havia feito viagem de avião, principalmente para visitar o estado de São Paulo. O mais interessante era ver como todos estavam gratos e felizes por estarem participando do evento para divulgar a língua de sinais da sua comunidade.
Para quase todas as pessoas presentes, mas principalmente para as surdas, vivenciar a experiência do encontro com pessoas surdas e ouvintes que sinalizavam uma língua de sinais diferente da sua foi um misto de surpresa e de identificação. Por mais que cada uma das línguas de sinais usadas no seminário fossem diferentes entre si, de algum modo, houve uma identificação, o que permitiu uma comunicação fluida e natural que misturou gestos e sinais de forma criativa e potente.
Para a logística do evento, contamos com a colaboração das pessoas participantes do Projeto Lucinda e do apoio da direção da Faculdade de Ciências e Letras e do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp, câmpus Araraquara, que forneceram transporte para o traslado dos aeroportos de Campinas e São Paulo até Araraquara e vice-versa. Também tivemos apoio da Seção Técnica de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (STAEPE) da Unidade, que documentou todo o evento com fotos e vídeos de alta qualidade.
O evento foi realizado com verba do próprio projeto, mas contamos também com o apoio da Pró-Reitoria de Pós-graduação, por meio da concessão de “Auxílios para organização de eventos científicos nacionais e internacionais pelos docentes e discentes dos Programas de Pós-graduação da UNESP” (Edital PROPG 32/2024). Esse auxílio foi fundamental para que pudéssemos trazer mais de dois representantes das comunidades estudadas. No projeto inicial, previmos a vinda de 2 representantes de cada comunidade, mas, à medida que as negociações sobre a viagem foram se efetivando, ficou claro que era necessário, para a maioria deles, que um representante ouvinte da comunidade os acompanhassem, pois a viagem era complexa, com muitas baldeações. Nesse caso, a vulnerabilidade linguística dessas comunidades fica ainda mais evidente, pois as companhias aéreas oferecem suporte às pessoas com deficiência, mas a comunicação com as pessoas surdas da comunidade seria muito difícil. Por isso, para garantir sua segurança, nenhuma pessoa surda viajou desacompanhada de uma pessoa ouvinte da comunidade.
Organizamos as viagens de modo que as chegadas e partidas se dessem em grupos. Assim, quando os representantes das comunidades chegaram aos aeroportos de São Paulo ou Campinas, estavam à sua espera ou uma pessoa da nossa equipe de pesquisa ou o motorista da Unesp, devidamente identificado. Desse modo, conseguimos garantir que todos chegassem em Araraquara e retornassem às suas respectivas comunidades em segurança.
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
2.1 Mesa de abertura
A abertura oficial do evento foi realizada no dia 03/12, às 8:30, no Anfiteatro A, da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, com a presença do Diretor da FCL, Prof. Dr. Jean Cristtus Portela, do Coordenador do Programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da FCL, Prof. Dr. Matheus Nogueira Schwartzmann, do Chefe do Departamento de Linguística, Língua Portuguesa e Letras Clássicas da FCL, Prof. Dr. Gustavo de Mello Sá, e da Coordenadora do Projeto Lucinda Ferreira e organizadora do Seminário, Profa. Dra. Angelica Rodrigues.
Na oportunidade, foi destacado a importância e o ineditismo do evento com a presença de representantes surdos e ouvintes das microcomunidades surdas participantes do Projeto Lucinda.
Durante a abertura, os representantes das comunidades foram chamados a fazer uma apresentação sobre a história da sua comunidade. Essas apresentações foram feitas nas suas respectivas línguas de sinais e marcaram o protagonismo que o evento quis dar às próprias pessoas oriundas das microcomunidades surdas investigadas. Embora um pouco acanhados de início, ao verem os demais se apresentando, todos se sentiram muito à vontade e deram depoimentos muito potentes sobre suas histórias de vida e das comunidades às quais pertencem.
2.2 Conferência de abertura
A conferência de abertura do evento foi proferida pela Profa. Dra. Ivani Fusellier-Souza, professora da Universidade Paris 8 e integrante da equipe do Projeto Lucinda. Com o título “Línguas de sinais das microcomunidades no Brasil e no mundo”, a professora apresentou um panorama de suas pesquisas sobre línguas de sinais emergentes, destacando a importância desses estudos para a valorização das línguas de sinais naturais, não institucionais.
2.4 Feira de artesanato
A sessão de painéis foi realizada simultaneamente a duas outras atividades, a saber coffee break e feira de artesanato. Nesse momento, todos os participantes do evento puderam desfrutar de um momento de integração e apreciar os produtos artesanais produzidos pelas mulheres surdas das comunidades de Buriti dos Lopes e Várzea Queimada, no Piauí.
O objetivo da feira foi justamente valorizar a produção manual dessas mulheres, destacando os saberes locais e a potencialidade cultural e econômica dessas comunidades.
A seguir, podemos ver algumas fotos dos produtos exibidos na feira:
2.5 Oficinas
No dia 04/12, realizamos, na sala 25, do Bloco de Sala de Aulas da FCL, 7 oficinas organizadas e apresentadas pelos representantes das microcomunidades surdas investigadas e presentes no evento em colaboração com as pesquisadoras e pesquisadores do projeto.
A primeira oficina foi oferecida pelas mulheres, duas surdas e uma ouvinte, da comunidade surda de Várzea Queimada, Piauí, que puderam mostrar aos presentes as técnicas para confecção de produtos artesanais, como tapete, bolsas, chapéus e cestos, feitos com a palha da carnaúba, palmeira muito comum no sertão do estado.
Na sequência, tivemos oficinas ministradas pelos representantes surdos e ouvintes das comunidades de Buriti dos Lopes/PI, Tiros/MG, Boa Vista/RR e Umuarama/PR. A comunidade surda Kaapor foi representada pelo Prof. Dr. Gustavo Godoy, que trabalha diretamente com os indígenas da Terra Indígena Alto Turiaçu. O encerramento do evento se deu com a apresentação de uma oficina de carimbó com os representantes da comunidade surda da Vila de Fortalezinha da Ilha de Maiandeua/PA.
Oficina Várzea Queimada/Piauí
Nesta oficina, as surdas Luzia e Celina, acompanhadas de Dona Silvana, ouvinte e mãe e avó de pessoas surdas, puderam, além de contar a história da comunidade de Várzea Queimada, relatar e mostrar o processo de confecção de peças artesanais e decorativas feitas a partir da palha de carnaúba. Esse artesanato é tradicional na cidade, que conta com uma associação que organiza a produção e a venda dos produtos feitos por mulheres surdas e ouvintes da comunidade.
As convidadas trouxeram tanto produtos para serem comercializados na feira quanto material bruto, a própria folha de carnaúba, para mostrar como elas fazem o “trançado da palha”, atividade totalmente artesanal e marca da história de Várzea Queimada.
Na foto a intérprete Jucemara realiza interação com Lúcia, surda-cega da comunidade de Buriti dos Lopes: a intérprete usa sinalização táctil adaptada para garantir a acessibilidade.
Oficina Buriti dos Lopes
Nesta oficina, os representantes da comunidade de Buriti dos Lopes puderam contar um pouco da sua história e do processo de criação da língua de sinais familiar.
Nathália, que é ouvinte e professora de educação espacial, é filha de Luzia, surda, fez um depoimento emocionante, contanto que não pode ser criada por sua mãe, pois a família achava que, por ser surda, Luzia não poderia cuidar da filha recém-nascida. Nathália foi então adotada por uma prima de Luzia. Resignada com a situação, ela contou que a mãe exigiu que pelo menos a família morasse perto da Buriti para que pudesse manter contato com a filha.
Nathália contou que a mãe sempre se fez presente em sua vida e que ela sempre a admirou, pois, as pessoas a viam como incapaz, mas ela percebia, desde criança, que a mãe realizava muitas atividades, fazia artesanato de crochê, cozinha, cuidava da casa, dos irmãos.
Todavia, Nathália confessou que nunca havia, de fato, avaliado o modo de comunicação que sempre utilizaram na família, e com o qual ela se comunicava com a mãe, como sendo uma língua ou algo que pudesse despertar o interesse de outras pessoas. Nesse sentido, ela enfatizou que a participação no Projeto Lucinda ressignificou a relação com essa língua e com a própria mãe, a quem passou a admirar ainda mais.
Nas fotos: Luís, ouvinte, interage com sua mãe Lúcia, que é surda-cega. Nathália, ouvinte, ao lado de sua mãe Luiza, surda, estão do lado direito. À esquerda, está o Prof. Anderson, fazendo a tradução para libras. À direita está a intérprete Sarah, que fez a tradução para o português.
Oficina Tiros – Minas Gerais
Na Imagem: Lúcio, aluno surdo que desenvolveu tese de doutorado sobre a LS de Tiros, Lenir e Maria de Fátima, irmãs surdas da comunidade de Tiros.
Nessa oficina, Lenir e Maria de Fátima puderam contar um pouco da história de sua família, que conta com diferentes gerações de pessoas surdas. Lenir, mora atualmente em Uberlândia, e é fluente também em libras. A oficina foi realizada em LS de Tiros com tradução em libras e português. Maria de Fátima contou como é sua vida na fazenda, onde ela faz queijos a partir do leite que tira das suas vacas. Ela nomeou todas elas com o sinal de cada uma. Foram exibidas fotos da cidade de Tiros, da fazenda de Maria de Fátima e do trabalho de campo realizado em 2022 por Lúcio junto com sua orientadora, profa. Angélica, e coorientador, prof. Anderson.
Oficina Umuarama/Paraná
Nessa oficina, as irmãs surdas Nádia e Rúbia, nascidas e moradoras da cidade de Umuarama/PR, fizeram uma apresentação contando a história da criação da Associação de Surdos da cidade, ASSUMU, e da primeira escola de surdos ligada à associação.
As irmãs relataram as iniciativas do casal americano, naturais da Califórnia, Charis S. Ames e John Ames, na criação da associação. O casal era ouvinte, mas tinha uma filha surda, sendo, por isso, usuários da língua americana de sinais, ASL. O contato do casal com a comunidade surda da cidade acabou influenciando a sinalização local, que, como temos registrado no Projeto Lucinda, conta com vários sinais da ASL.
Oficina Boa Vista/Roraima
Nessa oficina, o casal de surdos venezuelanos, Nelson e Francis, acompanhados da doutoranda Alessandra, fizeram uma apresentação contando a história da comunidade surda venezuelana migrante em Boa Vista/RR. Eles contaram como fizeram a viagem para o Brasil e todas as dificuldades que tiveram para se estabelecerem na capital roraimense.
Na apresentação, eles fizeram uma comparação entre os sinais da LSV e da libras, deixando clara as diferenças lexicais das duas línguas.
A oficina foi ministrada em libras, mas a variante usada pelo casal apresenta várias intersecções da LSV, sendo que esse é exatamente nosso foco de interesse no Projeto Lucinda.
Oficina Ka’apor/Maranhão
Essa oficina foi idealizada com a participação de dois representantes da etnia ka’apor. Infelizmente, por questões de logística, eles não conseguiram fazer a viagem para Araraquara, que incluía um longo trajeto de carro até Belém. Desse modo, a oficina foi realizada pelo Prof. Gustavo Godoy, membro do Projeto Lucinda, que vem há alguns anos trabalhando com a comunidade surda/ouvinte sinalizante ka’apor.
Prof. Gustavo apresentou a localização do povo Ka’apor, na Amazônia Maranhense e mostrou que o sinal do povo pode ser feito através de uma imagem motora que indica o tembetá, um adorno labial utilizado pelos homens.
Estima-se que a pessoa surda mais antiga conhecida tenha nascido por volta de 1890. Hoje, há cerca de 18 pessoas surdas distribuídas em seis aldeias, sendo que as duas maiores concentram a maior parte da população e da comunidade surda. A população total Ka’apor gira em torno de 2.000 pessoas. A maioria dos usuários da língua de sinais é composta por ouvintes, e os surdos funcionam como os principais catalisadores do uso e desenvolvimento desse sistema linguístico.
Oficina Vila de Fortalezinha/Pará
A última oficina foi organizada pelos representantes da comunidade surda da Vila de Fortalezinha: Manoel, mais conhecido como Preto, ouvinte, líder comunitário local; Mauro, surdo, pescador; Edilena, surda; Isaac, surdo, pescador e praticante de kitesurf.
Para essa oficina, o grupo organizou uma apresentação sobre o carimbó, ritmo musical paraense e muito popular na ilha. Preto iniciou a oficina trazendo informações sobre a história do carimbó, as roupas típicas e os instrumentos usados.
Esta oficina proporcionou a todos presentes, surdos e ouvintes, uma experiência única de apreensão de conhecimento musical, através do manejo das maracas, e dos passos de carimbó a partir da experiência de pessoas surdas.
O que vivenciamos foi um momento raro de trocas simbólicas que evidenciaram o cruzamento das culturas surda e ouvinte, em que o desejo tanto dos surdos paraenses quanto das pessoas presentes, surdas e ouvintes, de interagir suplantou todas as diferenças e preconceitos.
Mauro incentivou a todos a tentarem tocar as maracas, chamando atenção para o movimento das mãos e braços. Como pessoa surda, obviamente, o som das maracas não lhe é saliente, mas, na oficina, ficou evidente que a audição não se constitui como uma limitação para que os surdos da comunidade de Vila de Fortalezinha possam performar, em conjunto com os ouvintes, os ritos tradicionais.
O encerramento do evento se deu, no gramado da Faculdades de Ciências Letras, onde todos puderam dançar, numa grande confraternização.
Abaixo o vídeo da dança de encerramento do evento: várias pessoas em roda dançando o ritmo do carimbó, performado pelo Preto.
A realização do evento As línguas de sinais de microcomunidades surdas em debate: Seminário Internacional de Conclusão do Projeto Lucinda Ferreira foi uma oportunidade inédita de congregar pesquisadoras, pesquisadores, alunas, alunos e representantes das microcomunidades surdas reunidos em atividades que visaram um balanço do andamento do Projeto Lucinda Ferreira e a promoção e a valorização das línguas de sinais e dos saberes locais das microcomunidades surdas de Boa Vista/RR, Buriti dos Lopes/PI, Kaapor/MA, Tiros/MG, Várzea Queimada/PI, Vila de Fortalezinha/PA e Umuarama/PR. Nesse sentido, os objetivos do evento foram alcançados com êxito e reverberarão tanto no desenvolvimento das pesquisas quanto nas vivências pessoais dentro e fora das comunidades.
Abaixo é possível assistir a matéria produzida pela TV Unesp sobre o Seminário: