Projeto Lucinda

A comunidade surda de Vila de Fortalezinha no Pará

A Vila de Fortalezinha, localizada na Ilha de Maiandeua, no interior da Área de Proteção Ambiental (APA) Algodoal-Maiandeua, constitui um espaço social tradicional com forte coesão comunitária e práticas socioculturais marcadas por vínculos de parentesco, endogamia e partilha de saberes. 

Localização geográfica da ilha – norte de Belém.

Neste contexto, emerge uma microcomunidade surda composta por dez indivíduos — seis mulheres e quatro homens — cuja presença se destaca não apenas pela especificidade linguística, mas também por sua relevância enquanto manifestação de identidade coletiva. A formação dessa microcomunidade está ligada a fatores sociogenéticos, históricos e culturais. A endogamia entre membros das famílias fundadoras da vila (Teixeira e Rodrigues) contribuiu para a incidência genética da surdez neurossensorial não sindrômica entre os habitantes desde o século XIX. Estudos genéticos e antropológicos confirmam que, em Fortalezinha, a surdez ocorre com uma frequência 28 a 52 vezes superior à média mundial esperada, evidenciando o impacto das relações de consanguinidade em contextos isolados e socialmente coesos.

Vila de Fortalezinha : ilha de Maiandeua 

Contudo, a surdez, nesse cenário, não é compreendida como déficit, mas como parte constituinte da diversidade cultural local. A comunidade surda e ouvinte (familiares) de Fortalezinha desenvolveu sua própria manifestação linguística — a Língua de Sinais natural e emergente da Ilha de Maiandeua — elemento fundamental de comunicação, pertencimento e preservação da memória coletiva. Esse fator reforça a noção de que microcomunidades – integradas em ambiente ouvinte – podem desenvolver sistemas linguísticos próprios, reafirmando sua autonomia socio-cultural. O Espaço Cidadão Tio Milico atua como epicentro das práticas comunitárias, especialmente no que tange à inclusão e valorização da cultura surda e ouvinte local. Fundado com o propósito de salvaguardar o carimbó e promover a educação de base, o local expandiu suas ações para atender também aos surdos da comunidade, oferecendo atividades educativas, culturais e formativas. Esse espaço, definido simbolicamente como “lugar de reencontro”, desempenha papel essencial na reprodução social, nas trocas afetivas e na coesão intergeracional.

Espaço Tio Milico

Do ponto de vista sociológico, a comunidade sinalizante de Fortalezinha representa uma forma de integração onde os papéis sociais são compartilhados em função de uma moralidade coletiva e de uma temporalidade ligada aos ciclos naturais. A linguagem, a cultura e a ancestralidade tornam-se elementos de resistência frente às dinâmicas excludentes que frequentemente marginalizam corpos surdos em contextos urbanos.

Portanto, a análise da microcomunidade surda da Vila de Fortalezinha contribui para a compreensão mais ampla das comunidades sinalizantes no Brasil, onde as práticas sociais tradicionais, os vínculos familiares e os modos de vida locais continuam a produzir e preservar identidades singulares e sistemas próprios de construção de significação do mundo. 

Na comunidade de Fortalezinha, observa-se o uso de uma língua de sinais local e natural com estrutura linguística própria, genuína e funcional. Nos primeiros estudos (Carliez&Fusellier-Souza, 2016 et Chagas, 2021) foram colocado em evidência o uso de uma língua visuo-espacial autêntica, caracterizada por uma organização gramatical complexa que envolve o uso coordenado de oito parâmetros linguísticos — quatro manuais e quatro não manuais. Essa língua dispõe de um estoque lexical de uso quotidiano, mobiliza o espaço de forma simultânea e diagramática, com apontamentos que operam tanto de maneira funcional quanto ancorada em espaços presentes ou geograficamente distantes. A LS local cumpre uma de suas funções mais primordiais: a narração de histórias e relatos de vida, permitindo o acesso a estruturas gramaticais discursivas próprias, consistentes e observáveis. A comunidade manifesta um perfil sociolinguístico híbrido, com falantes surdos predominantemente monolíngues em LS e ouvintes que demonstram um uso funcional e adaptado da mesma, compondo um ambiente bilíngue singular. Trata-se, portanto, de um contexto de inclusão linguística espontânea, no qual a língua de sinais é plenamente reconhecida como meio legítimo de comunicação e transmissão de saberes.

Trabalho de campo - Missão de Coleta de Dados – Janeiro de 2024

A missão de campo foi realizada entre os dias 5 e 11 de janeiro de 2024, com a participação das professoras Angélica Rodrigues e Ivani Fusellier-Souza que foram acompanhadas por Willen Brasil, professor e estudante vinculado à UFPA. A comunidade surda e ouvinte da Vila de Fortalezinha tem sido objeto de estudo por pesquisadores franceses e brasileiros desde 2014, quando a professora aposentada Luizete Carliez (UFPA) identificou o campo e iniciou uma série de visitas de colaboração científica. A professora Ivani Fusellier-Souza, por sua vez, já realizou quatro missões no local, voltadas tanto à coleta de dados quanto ao desenvolvimento de atividades com a comunidade surda e ouvinte. De 2015 a 2020, Anne Chagas (UFPA) desenvolveu sua tese de doutorado, com foco na descrição linguística da língua de sinais local, defendida em 2021.

A presente missão foi articulada a partir do contato com o líder comunitário Manoel Teixeira (conhecido como “Preto”), que organizou a logística da recepção. A equipe foi acolhida no Espaço Cidadão Tio Milico. Um dos membros surdos locais, Isaac Teixeira, colaborou tecnicamente com as gravações. A coleta de dados teve início dois dias após a chegada e foi realizada diretamente nas residências das famílias surdas e ouvintes da vila. Pela primeira vez, os ouvintes foram também incluídos como interlocutores valorizados no uso da língua local, o que ampliou o escopo e o alcance da pesquisa.

Missão de campo 05 ao 11 de janeiro 2024

A metodologia aplicada incluiu relatos de vida, questionários, haifa clips e gravações espontâneas. Todos os participantes demonstraram grande engajamento na documentação e valorização de sua língua. Durante a missão, a equipe foi calorosamente acolhida pela comunidade, que também promoveu passeios pela ilha, incluindo uma saída de barco conduzida por Mauro, morador surdo e pescador local. Ao final da missão, foi organizado um lanche coletivo no Espaço Tio Milico. Na ocasião, a professora Ivani Fusellier-Souza apresentou um pôster comemorativo retratando os dez anos de estudos linguísticos na comunidade, o que gerou um momento significativo de reconhecimento e troca com os moradores locais. A missão resultou na constituição de um valioso corpus de dados linguísticos, bem como no fortalecimento de laços com os colaboradores locais, com os quais seguimos em contato ativo desde então.

Missão de campo 05 ao 11 de janeiro 2024

Narrativas Pessoais

Abaixo disponibilizamos duas narrativas pessoais, com legenda em português e tradução para libras.

O vídeo anotado pode ser aberto no ELAN usando o arquivo eaf aqui (link para o repositório)

Glossário

É possível consultar abaixo uma amostra do vocabulário da língua de sinais da Vila de Fortalezinha.

Os sinais são exibidos em foto e/ou gif e alguns são acompanhados de um vídeo que apresenta o sinal no contexto de um enunciado.

Acordar
Açucar
Água
Andar
Aqui / Hoje
Arroz
Árvore
Avião
Banheiro
Barbear
Batizar
Beber
Bicicleta
Boi / Vaca
Borracha
Cachaça
Cachorro
Casa
Casar
Cavalo
Chorar
Chuva
Cobra
Comer
Construir
Correr
Cozinhar / Ferver
Criança / Bebê
Dançar
Dinheiro
Doença
Febre
Feijão
Filho
Fofoca
Formiga
Forró / Dançar / Festa
Galinha
Gay
Grávida
Homem
Igual
Janela
Lua
Macarrão
Madrugada
Mãe
Manhã
Maquiar
Mau / Ruim
Medo
Mentir
Morrer
Muito
Mulher
Não
Não Gostar
Noite
Padre / Cantar
Pai
Passaro
Peixe
Policia
Pouco
Professor
Quantos
Rio
Sol
Tarde
Televisão
Trabalhar